quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Vizinhos do 44

Dois corpos unidos em uma mesma razão. As luzes de Natal lá fora não atrapalhavam a paixão que explodia pelo peito, transbordava pela boca e era causadora de todos os arrepios da noite. Era também causadora de muitas outras coisas que são sem sentido, ainda que se perdessem com o vento que vinha forte e chocava na pele quente e macia dos dois. Sentia-se completo por outra coisa além daquilo, que talvez, e muito provavelmente, fosse o espírito da época. Não, não o capitalismo que fazia. Sim, a magia da eternidade de ser criança, de se contentar com chocolates e doces, de esperar ansiosamente pelo fim da véspera e a chegada do bom velhinho.
Era Natal aqui na vizinhança, mas só era possível notar pelas luzes piscando do lado de fora da casa. Do lado de dentro do 44 era outro universo, muito mais adulto, porém não menos mágico. Pode ser que fosse, mas diremos aqui que a magia que um casal leva dentro do coração seja diferente daquela de quando se é criança. Vem malicia, vem tesão e outras coisas junto. Veio pra mim também, mesmo que sem desejar, aquela forte vontade e curiosidade. Entrar na casa, puxar as cobertas, e se aninhar com os dois. Sentir-lhes o peito o forte, a barbara áspera, as veias saltando. Sentir então, um calor diferente. Um toque delicado e frio. Proibido porém nesta Ilha da Sociedade Das Almas Perdidas. Aqui, que é também onde moro, habitam os piores amores, as piores mulheres, e os mais nojentos homens. Não se tem nome para a Ilha até agora, mas eu gosto de chama-lá assim. Sabem que a sua extensão dá-se pelo medo de cair na água com os braços abertos, desejando a liberdade e beijando o igual - eu insisto em que era apenas por medo.
Eu continuei a notar a quietude do lado de fora da casa, sem entender o que não atingia o interruptor da luz do lado de dentro. Talvez estivessem mesmo trancados em outro mundo de prazer imaginário que eu não podia sentir. Pela Ilha, pela casa, por meus pais. Menos por mim. Sentei no chão no meio da rua, olhei para as janelas e encontrei as árvores me chamando para dentro do quintal, e depois para dentro da casa, me convidando a entrar de baixo das cobertas. Não dei um passo sequer em direção dos dois amantes; não podia vê-los mas podia senti-los. Eu nem tinha certeza se eles eram amantes de longa data, o que tinha notado era hoje de manhã e apenas. Apareceu um e depois, logo o outro que segurava a sua mão como quem segura o mundo e não quer solta-lo. Como amantes, por isso preferi me referir a eles por essa palavra; não achei outra.
Voltei os meus olhos para as mãos. Conferi os pulsos, senti meu coração. Não dei um passo, não falei, mal respirei. Eram as arvores que me chamavam e eu tinha a certeza de que arvores não falavam - esses são os efeitos que aparecem ao longo da vida quando se ouve muito os pais. Então tomei coragem, virei homem e invadi o quintal dos vizinhos do 44. Não entrei dentro da casa, porque ouvi os ruídos de longe; eles estavam se amando outra vez. Tranquei os olhos e como uma criança de 4 anos com medo da bronca, voltei para a casa, voltei para a Ilha, voltei para os meus pais, mas já havia completado 17...